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Seria o Outro Lacan a Escola dos Annales da psicanálise?

  • Foto do escritor: Patrícia Mezzomo
    Patrícia Mezzomo
  • 20 de ago.
  • 5 min de leitura

Texto escrito para a Sessão Teórica da Escola de Psicanálise Estrutural - EPE


Marcada pela fundação da revista francesa "Annales d'histoire économique et sociale" em 1929, por Lucien Febvre e Marc Bloch, a Escola dos Annales foi um movimento historiográfico revolucionário que transformou profundamente a maneira como a história era concebida e estudada.


O principal objetivo da Escola dos Annales era romper com a história "tradicional", que se focava predominantemente em grandes eventos políticos, biografias de reis e generais, e uma narrativa linear e factual. Em vez disso, os Annales propunham uma história mais total, abrangente e explicativa, interessada nas estruturas de longa duração, nas mentalidades, na economia, na sociedade e na cultura, articulando interdisciplinaridades com o objetivo de incorporar métodos e conceitos de outras ciências.


Poderíamos muito bem pensar nesse recorte como uma espécie de metodologia lacaniana para apresentar à sociedade uma psicanálise mais próxima da ciência de fronteira de sua época e mais distante das ciências aristotélicas e euclidianas que predominam na ideologia do nosso ocidente.


Mas para além disso, Eidelsztein, com seu Outro Lacan, nos dá a notícia dos “Annales psicanalíticos”: Precisamos recontar a história, apresentar uma outra perspectiva de Jacques Lacan, que não a dita pela voz do “rei” Miller


Miller venceu uma batalha que sequer sabíamos estar sendo travada. Não conhecemos as diferenças teóricas entres esses dois Jacques e tomamos um pelo outro como sendo a mesma coisa. Estarrecedora verdade é a revelação justamente de uma oposição entre essas duas teorias psicanalíticas que levam a ética clínica à caminhos diametralmente opostos.


O psicanalista, menos atento à letra de Lacan, costuma pensar que ao ler Miller está lendo Lacan, mas o que ocorre é justamente o contrário, ao ler Miller, não resta nada de Lacan a não ser uma espécie de silenciamento disfarçada de conceitos camuflados e manipulados para dar conta de uma nova proposta teórica que não a do sujeito mas sim a do gozo.


Para entender que um Jacques não diz o mesmo que o Outro, nosso holofote deve se virar em direção ao ponto central que diferencia esses dois autores, a saber, o significante.


A centralidade do significante traz a reboque uma verdade inexorável no nosso campo. O significante subverte o preconceito hegemônico de bases newtonianas que supõe ser a energia que move o corpo e explica toda ação (massa + energia). 


Estamos tão inseridos nesse paradigma, que mesmo Freud não pode escapar e por isso deu a sua pulsão a mesma lógica que Newton viu na física. Segundo ele, a trieb é uma exigência de trabalho que o soma impõe ao aparelho psíquico para todo ser da espécie humana. Freud acreditava que a pulsão se originava no corpo biológico, quando na realidade se origina em um dizer e no cerne do laço discursivo.


Fica lógico entender porque Miller venceu essa batalha. Afinal, como propor a um ocidental do século XXI que o que ele sente no corpo é fruto de um dizer, de um material linguístico significante e não como algo do próprio corpo? Não é lógico e parece irracional. Batalha vencida. Miller anuncia seu gozo do corpo, mata o significante, que deveria matar a coisa, e apoiado por Freud e pelas ciências biológicas do nosso tempo, transforma a psicanálise em um sintoma fruto de um gozo corporal, com o qual o humano tem que aprender a conviver e aceitar sua impossível escapatória.


Mas afinal o que propõe Lacan?


Aqui reproduzo Eidelsztein na página 271: “O que Lacan está propondo é uma ontologia derivada do intervalo do inconsciente… Trata-se da função do intervalo entre S1 e S2, e sua articulação com o desejo e não com o gozo (goce) ou com o corpo biológico”.


Se voltarmos um pouco na teoria, verificaremos que o que chamamos de intervalo, está intimamente relacionado ao conceito de significante e de sujeito. Um significante é aquilo que significa algo para outro significante e o sujeito está e é criado justamente no espaço, no intervalo, na hiância localizada entre esses dois significantes. 


Veja, estamos falando de linguagem e não de corpo biológico. Lacan apresenta uma ontologia do intervalo, apresenta a ideia de que existe algo criado pela dupla significante. Uma ontologia do intervalo e não do corpo tridimensional que podemos tocar, sentir e cheirar.


“Essa é uma ideia muito simples, mas difícil de apresentar e implica uma ruptura com a tradição ontológica da filosofia ocidental. Em Lacan há algo anterior ao ser”. 


Para a metafísica aristotélica, para Freud, para Miller, o ser ontológico tem sua origem no palpável do corpo biológico. Aí está o início e o fim do humano. Em Lacan, tudo isso vem depois. A resposta é criacionista, o ser e o não-ser provém da criação ex nihilo.


Temos aí, a chave que abre a porta do inconsciente de Lacan. Este inconsciente não se presta à manobra ontologizante e Lacan sempre manteve uma rejeição radical a toda ontologia em psicanálise. 


Ele nos lembra que o “ser” não é propriedade de toda língua. A dificuldade para nós é que pensamos que sempre tem que haver algo substancial primeiro é idêntico a si mesmo para responder ao ser, porque acreditamos que o ser vem antes da linguagem. Não nos damos conta de que o ser da ontologia é um produto de certas línguas e de certas tradições filosóficas.


Por raciocinarmos como Aristóteles, fizemos uma manobra substancialista na linguagem: “em lugar de sustentar que a matéria vem do significante, extraiu-se o verbo “ser” do mundo do significante e passou-se a utilizá-lo para especificar a matéria prévia ao significante”.


Uma analogia que pode facilitar nossa mente viciada em consistência, seria pensar em número e funções ao invés de palavras. É como se na equação 2 + 2, tivéssemos extraído a função + da equação e passassemos a relacioná-la como algo isolado, material e causador do mundo. O +, ou seja, uma função passa a ter status de causa. E fazemos filosofia e grandes debates a respeito do +, quando se trata apenas de uma função de adição.


O problema é que o significante foi isolado e foi dada consistência ao verbo ser, ou como diz Barbara Cassin: “A ontologia esquece que ela mesmo é um discurso.”


É disso que se trata. Fizemos psicanálise com apenas uma palavra e não com a cadeia significante. Não podemos perder de vista nosso horizonte clínico. Ontologizar a palavra nos prende a uma armadilha enganosa do incurável, do irremediável, e portanto não há nada a ser feito, nenhuma mudança é possível. O final de uma análise seria assumir “a merda que se é”, chamando isso de castração. 


Mas não foi isso que Lacan disse e é disso que trata nosso “Annales psicanalítico". anunciar as proposições fundamentais do primeiro Jacques: Não se trata do ser, não se trata de ontologia, isso nos envergonha e nos aprisiona ao engano. O corpo é fruto de um dizer, de uma articulação significante e portanto pode ser dito de outra maneira, desde que seja dito. A verdadeira castração reside justamente no fato de que não se é.


Cabe ao psicanalista, agora advertido das propostas teóricas, eleger sua ética clínica entre o ser e o dizer. Sua decisão consiste em escolher entre ser ou função, entre ser ou significante. E a matemática é a ferramenta indicada por Lacan para possibilitar uma operatória lógica sem que precisemos apelar para uma mitologia ontológica.





 
 
 

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