A excomunhão do plural
- Patrícia Mezzomo
- 15 de out.
- 5 min de leitura
Edelsztein começa seu quinto enlace nos levantando questões a respeito dos neologismos de Lacan e aponta algumas tentativas de respostas que nos levantam outras perguntas:
“Os neologismos de Lacan, possuem o valor de tentar perturbar a nossa amarração a construções unívocas que referem a uma realidade primeira, externa ou estabelecida. Possuem a estrutura e a função do Witz, o chiste, a agudeza e a fantasia verbal. E terceiro e não menos importante, não se admite, em lacanismo, que Lacan apresenta uma nova teoria em psicanálise, com conceitos e diferenças teóricas inéditas e com propriedades específicas. Não se trata de uma poética. Os neologismos de Lacan possuem coerência e orientação comum e, como ele mesmo afirma, são jornadas sobre o tema, os neologismos tendem ao matema. Creio que a resposta, ou pelo menos uma delas, é que os discípulos de Lacan não reconhecem na obra de seu mestre uma novidade absoluta, por suporem que Lacan = Freud.”
Podemos pensar que a proposta que o autor nos traz, assim como em todos os capítulos anteriores, é o argumento da falha do rigor teórico. Eidelsztein está sempre nos anunciando, e demonstrando incansavelmente como a prioridade da experiência clínica desmonta esse rigor, aproximando a psicanálise de uma espécie de religião fundada no saber atado a verdade que o Pai Sigmund Freud mantém garantido, desde que se mantenha nesse lugar. Não é permitido matar o Pai, único e indestrutível. Matá-lo, é sinal de heresia e seu assassino tem como pena a excomunhão.
Excomunhão que acontece no momento exato em que Lacan avançaria sua teoria, sobre o tema: os nomes-do-pai, agora no plural.
Ironia ou não do destino, o tema no plural é uma das perguntas que Eidelsztein deixa a nosso cargo, ao final de seu capitulo: “As concepções sobre os nomes do pai, será o que faz falta? O rechaço da perspectiva científica retornará impondo esses falsos limites?”
Teriam tais perguntas, relação entre si? E porque essas duas perguntas apresentam-se em uma aula cujo tema são os neologismos de Lacan?
Se nos debruçarmos na única aula proferida por Lacan a respeito do tema, veremos a construção lógica que ele fazia avançar desde o seminário 3 sobre as psicoses, momento em que ele aborda o conceito de Nome-do-pai - no singular. Nesta aula - nomes-do-pai -, Lacan cita seu trajeto percorrido até então, marcando-o da seguinte maneira: Metáfora paterna → função do Nome próprio → angústia → nomes do pai. E abre sua aula com a observação que nos remete a pergunta deixada por Eidelsztein: “Não será possível fazer-lhes entender, ao longo desta primeira exposição, porque este plural. Pelo menos verão abrir-se o que eu pretendia introduzir como progresso em uma noção que esbocei a partir do terceiro ano do meu seminário, quando tratei do caso Schreber e da função de Nome-do-pai.”
Não será possível entender o porquê do plural, mas é possível se apegar a proposta inicial. O plural é um progresso teórico. Poderíamos pensar que de alguma maneira, Lacan nos indica que o rumo da sua teoria o fazia caminhar rumo a queda do pai um? Teria Lacan entendido que a transição do singular para o plural seria uma tentativa de sair da lógica do pai como um deus garantidor e seguir o caminho científico de pluralizar os saberes? Penso que não é à toa que Eidelsztein nos traz o pai da horda de volta nesse texto e acredito que seja com o objetivo de marcar o lugar do o nome-de-pai singular, o pai um, o pai garantidor da ordem simbólica.
O campo lacaniano se comporta como os irmãos da horda primitiva que, após matarem o pai, o reinstalam como totem, agora ainda mais poderoso. Freud é o Pai totêmico que não pode ser superado, apenas venerado. Qualquer um que proponha uma novidade radical é visto como uma ameaça a essa ordem religiosa.
A proposta plural de Lacan então tem mais cheiro ainda de heresia. Seus neologismos não criam apenas uma nova teoria mas também aniquilam o totem, a garantia, a lógica imaginária do complexo de édipo que diz como as coisas devem ser.
Teria Lacan feito seu conceito avançar rumo ao progresso, como uma tentativa de derrubar a “igreja psicanalítica” que se sustenta numa estrutura religiosa anti-científica?
Acho que não é a toa que Eidelsztein ao deixar a pergunta sobre o plural dos nomes-do-pai a articula ao rechaço da perspectiva científica. O campo parece ter se estruturado em torno do Nome-do-Pai Freud (no singular) como o garantidor da verdade. Esse é o "rechaço da perspectiva científica" que Eidelsztein aponta e que exigiria o parricídio teórico para poder avançar. O rechaço científico também explicaria o freudolacanismo tão dominante até os dias de hoje, pois tenta fazer avançar Freud pela letra de Lacan, mas sem perder Freud. O lacanismo se recusa a admitir a novidade de Lacan e o trata como um apêndice de Freud, o "Pai" único e totêmico.
Em ciência, é esperado que Einstein supere Newton, que a quântica rompa com a relatividade. O parricídio teórico é a condição do progresso. A psicanálise, ao se recusar a admitir a ruptura de Lacan com Freud, opera como um discurso religioso, não como uma ciência. A teoria avança por rupturas, não por veneração ao fundador. Reconhece a si mesma como um discurso, um sistema axiomático, e não como a revelação de uma verdade ontológica. Portanto, "rechaçar a perspectiva científica" significa, neste caso, tratar a psicanálise como uma religião: com um Pai fundador intocável, uma verdade revelada em seus textos sagrados e uma recusa à formalização que a manteria aberta e crítica. O rechaço da perspectiva científica é portanto o que permite ao campo lacaniano se organizar como uma igreja em torno do Pai totêmico, Freud. E uma vez que essa estrutura religiosa está no lugar, ela precisa se defender de qualquer ameaça à sua estabilidade.
Mas como sabemos, a estabilidade estabiliza. E o avanço não se dá na estabilização, mas sim no abalo, na abertura. Tanto na clínica quanto na teoria. Na clínica: Ela abre a possibilidade de pensar amarrações para o sujeito que não passam pela via edípica clássica e imaginária, como é o caso das psicoses que se alicerçam numa metáfora outra que não a paterna. Na teoria: Ela dissolve a própria estrutura religiosa do campo. Se a função paterna é plural, então Freud não pode mais ser O Pai, mas apenas um dos nomes possíveis para fundar um discurso.
Lacan percebeu que este modelo de um único Pai garantidor estava em crise na cultura contemporânea. O Pai já não tinha essa força universal. A passagem para o plural é então uma revolução teórico-clínica que o campo se recusa a teorizar.
Acho que aqui chegamos no ponto de espanto que os neologismos de Lacan causam ao lacanismo, diferentemente do efeito obtido com os neologismos freudianos, como bem aponta Eidelsztein.
O neologismo de Lacan aponta para a ciência, para a formalização, e sabemos que é a ciência a arma que matou Deus. Em Lacan, ao contrário de Freud, criar palavras novas é forjar um novo ferramental teórico que possibilita posicionar a psicanálise fora do campo religioso. Tendem ao matema, pois o matema formaliza a falta. Lacan coloca a matemática na sua linguisteria e abre a psicanálise para a formalização da falta. Não há mais garantia, mas sim abertura e pesquisa.
Désêtre, parlêtre, moterialisme são neologismos que possibilitam nomear e operar com uma nova condição de sujeito, que não é mais garantido por um Ser Ontológico e Imaginário. Por isso tentaram fazer disso poesia. Aceitar o que Lacan propôs não é pouca coisa. Seus neologismos derrubam o totem, abolem o ser ontológico e obrigam o leitor a adentrar o campo científico com o rigor que tal perspectiva necessita.
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