A psicanálise como a terceira via
- Patrícia Mezzomo
- 1 de out.
- 4 min de leitura
Com o surgimento da ciência e do homem moderno, vemos surgir também o anúncio de um novo mundo, o antropocentrismo, onde o lugar central agora é ocupado não mais pela autoridade divina, mas sim por um saber racional, lógico e metodológico.
Está dado que temos um novo tipo de homem, uma nova forma de manobrar o saber, e também um novo tipo de mal-estar. Mas, como sabemos em psicanálise, o sintoma, aqui denominado mal-estar, sempre traz consigo uma mensagem ainda não decifrada.
Ocupar o centro do mundo não parece pouca coisa. Desconfio que esse lugar do centro possa ser o indício que culmina em tantas tentativas de responder e solucionar o mal estar produzido por tal “cargo”. Mas como esse “maquinário” de sofrimento moderno funciona?
A ciência surge como um novo tipo de manobra sobre o saber, ocupando o lugar do saber divino. Essa manobra exige uma lógica racional, com suas regras que produzem como efeito colateral, o sujeito. Tanto sujeito, quanto ciência, estão agora submetidos a regras rígidas, que erradicam a subjetividade humana. E como sabemos, que toda erradicação costuma trazer a reboque, o sintoma, é disso que se trata aqui. De um recalque do subjetivo em nome de uma garantia totalitária.
Deus foi deposto, mas a busca do Grande Outro Completo parece não ter caído junto com a ordem divina. Estamos sempre tentando fazer sutura com alguma garantia total, sem falhas, que nos dê conta das faltas e dos furos que são intrínsecos a qualquer ordem simbólica. E tudo que não se encaixa nessa totalidade, tende a ser posto “de lado” retornando como sintoma, como diria o próprio Freud.
No texto de Eidelsztein - As estruturas clínicas a partir de Lacan - ele nos apresenta de maneira muito clara, a operação dessa lógica moderna que divide o sujeito causando o mal-estar da nossa atualidade e as tentativas de fazer sutura a partir de diversas modalidades que almejam responder ao que ficou de fora, buscando trazer de volta a verdade na forma da subjetividade do sujeito.
A própria ciência tenta fazer sutura do sujeito que ela mesma produziu. Para isso, ela usa de artifícios como a lógica simbólica e a psicologia.
Com a lógica simbólica vemos a tentativa de criar um sistema de pensamento puro e perfeito, alicerçado numa linguagem superior idealizada, batizada de metalinguagem, no Outro Completo representado pelo universo do discurso. Nela, a separação entre verdadeiro e falso reduz a verdade a um valor binário e estático, ignorando a força dialética e o movimento que ela tem para o sujeito.
Já na psicologia a manobra de sutura é feita na transformação do sujeito em objeto de estudo, chamando-o de “Homem”. O sujeito é tomado em uma aparente unidade, perdendo toda possibilidade de condição particular e podendo então ser um objeto de conhecimento científico, erradicando o efeito sujeito, na tentativa de suturá-lo, por meio da objetivação.
Ambas as abordagens tentam dar conta do sujeito pela via da totalidade, mas ele insiste em se apresentar no particular. A tentativa de sutura é falha em seu alicerce: a própria ciência se contradiz nessa suposição de Outro completo com o teorema de incompletude de Gödel, o princípio de incerteza de Heisenberg e a pesquisa de Church, que surgem para provar que a ordem simbólica é, por natureza, incompleta.
Essa verdadeira usina de mal-estar causada pela universalização gerada pela ciência e pela psicologia, onde todos os sujeitos são considerados igualmente, apagando assim as diferenças particulares próprias da condição subjetiva, resulta em efeitos muito especiais na subjetividade moderna.
Vemos entre eles a política de segregação e o que Freud chamou de "narcisismo das pequenas diferenças", onde os seres humanos modernos, aqueles do final deste século, desesperam-se tentando encontrar a diferença que fundamenta sua identidade.
No campo religioso e místico, surgem respostas ao mal estar, objetivando um retorno ao irracional, que foi gradualmente erradicado pela racionalidade científica e que contempla a função da verdade subjetiva. A ciência impõe por toda parte um discurso racional que exclui a verdade. Os fanatismos religiosos reintroduzem essa verdade, mas com base na discriminação e na irracionalidade das explicações.
A psicanálise, então, surge não como uma ciência ou religião, mas como uma terceira via, um discurso formalmente comunicável que se oferece para a recuperação da condição particular de cada sujeito.
Temos aqui diferenças interessantes no ferramental moderno para lidar com o mal-estar humano.
A ciência constroi sua própria versão de sujeito como um ser totalmente racional, sem falhas de memória e sem ambiguidade se alinhando a uma fantasia de totalidade imune ao furo. A religião tenta reintroduzir a verdade com base na irracionalidade das explicações, mantendo uma garantia divina detentora de um saber total. Já a psicanálise opera no sentido oposto, sem fazer sutura. O que interessa está no espaço, na hiância. Nesse quesito, parece ser a única resposta que não recorre ao tamponamento, mas sim à formalização da falta.
Ao formalizar, ela não responde, não fecha, mas abre. Abre ao particular e subjetivo de cada sujeito. Traz de volta a verdade, não como resposta mas sim como espaço, mantendo o campo da falta.
Descentraliza o homem antropocêntrico, detentor de um saber coletivo e enganoso sobre si mesmo, para deixar o lugar vazio da verdade de seu desejo, que é sempre faltoso e nunca pode ser totalmente sabido.
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