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O corte que faz conta e abre o espaço do sujeito

  • Foto do escritor: Patrícia Mezzomo
    Patrícia Mezzomo
  • 17 de set.
  • 4 min de leitura

Não basta ler Lacan, nossa confusão está em lê-lo mas não entendê-lo. E a causa desse engano está alicerçada na forma como nos assentamos no saber ocidental. Ou, como afirma Eidelsztein, “a confusão se faz porque lemos Lacan desconhecidos de sua posição de rejeição à ontologia e à substância, o que significa ler sua obra sem as ferramentas teóricas e textuais necessárias”. Não o conhecemos porque o que nos falta em teoria, nos sobra em preconceito. O resultado é uma tradução de sua obra, enviesada pela perspectiva ontológica que assola a todos nós ocidentais do século XXI.


Não é que Lacan não tenha sido claro. Não, ele o foi. O engano é de base, de saída. Em nossa sociedade acreditamos que é sempre, em última instância, sobre bens, sobre materialidade, sobre substancialidade e isso nos entorpece diante de letra significante. E Lacan nos coloca diante de uma decisão ética que norteia todo o ato clínico. Seu conceito de sujeito requer uma maneira inovadora de pensar o humano, a partir de bases teóricas completamente opostas ao senso comum


O raciocínio não é corporal, mas sim, linguístico e matemático. Trata-se da lógica de um furo, de uma falta intrínseca à própria linguagem e Lacan foi o primeiro psicanalista a trabalhar com a concepção deste tipo de limite na psicanálise. A ideia de que possa haver um lugar vazio na linguagem apareceu no século XX com a obra de Saussure, mas com nenhum outro autor chega até o nível de desenvolvimento proposto por Lacan, justamente por ele pensar as teorias à luz da perspectiva psicanalítica.


Em Lacan o significante possui uma lei fundamental: todo significante só é a diferença em relação a todos os outros e inclusive a si mesmo. Pensemos com cuidado sobre isso. Se o significante é pura diferença, temos por lógica, a impossibilidade de afirmar que algo é, já que ao nomear algo, imediatamente, de acordo com a lei da diferença, estamos também dizendo o que ele não é. Portanto não pode haver ontologia, já que na lógica significante, ele não é! Sendo apenas a pura diferença, não pode ser, pois se for, é igual e não diferente. Afirmar que ele é, seria, portanto, ontologizar e manter a lógica ocidental que oblitera nossa leitura antifilosófica do francês Jacques.


Também é importante articular essa lei da diferença à ideia da representação significante, ou seja, representação enquanto diferença. E isso é muito importante para o argumento anti ontológico de Lacan.  Me explico: o significante é aquele que representa o sujeito para outro significante. Mas representa como? Representa em pura diferença. Ou seja, o sujeito, além de não se apresentar ele mesmo, comparecendo apenas por “procuração”, ainda comparece em representação de pura diferença. Comparece entre dois e diferente destes dois. No espaço entre. No espaço que se abre entre a dupla significante. O sujeito não se apresenta a não ser via significante da pura diferença. É como se o significante viesse anunciar o sujeito representando tudo que ele não é


Precisamos pensar o quanto isso é disruptivo ao pensamento materialista e biológico do ocidental moderno. E mais ainda, Lacan, além de não coadunar com esse pensamento, utilizando-se da linguística como base de apresentação de seu sujeito inapreensível, também recorre à matemática como ferramenta de formalização desse tal sujeito da hiância, causando uma verdadeira pane intelectual no leitor de carne e osso.


E novamente testemunhamos a confusão generalizada no entendimento da proposta, porque nossa cabeça não funciona dessa maneira. O leitor aristotélico, confunde-se e acredita que Lacan está tentando completar esse furo com a matemática, quando na verdade, o que ele está apontando, como sempre o fez, é para o sentido contrário. A matemática é requerida para evitar preencher o furo da linguagem com ser e a substância.


Precisamos dar muita atenção a isso: o ser da linguagem é a tentativa de tamponar esse espaço do sujeito que não é apreensível. Nós ocidentais, estamos sempre tentando capturá-lo, preenchê-lo, dar a ele substância ou explicá-lo. Logicamente, não faríamos diferente com a proposta de uso da matemática por Lacan. Entendendo-a erroneamente como uma tentativa de Lacan de usá-la como preenchedora de um espaço. Infelizmente foi assim sua leitura e a distorção de sua importância para a psicanálise.


Mas não deveria ser assim. Se a tentativa de sutura não obscurecesse nosso entendimento, poderíamos perceber que Lacan usa a matemática para formalizar o impossível-lógico. Não se trata de usá-la para tentar uma transmissão integral, como se ela não fosse incompleta, mas sim de fazer psicanálise sem o “ser” substancial. Lacan não tenta a transmissão integral como forma de tamponar o furo, já que é ele mesmo quem o denuncia, com seu argumento, do furo da linguagem. É justamente a partir do furo, da incompletude, que precisamos operar com o matema, sem sentido e significado, que não aspira tamponar tal furo com a substância ontológica. 


Para aceitar essa proposta é necessário aceitar que o que acreditamos ser ontologia, na verdade, trata-se de fatos do dizer.  Se conseguirmos abrir mão da lógica substancialista do ser - que tenta tamponar o furo - estaremos aptos a operar o corte linguístico de maneira lógico-matemática. É propriedade do significante criar, pela via da introdução de corte, as coisas que podem ser contadas. A função do significante é introduzir cortes de maneira tal que separam de “um a um” os objetos mas que, caso contrário, estariam em continuidade. O corte que divide o “um” em “dois” fazendo-o passível de ser contado. Não se trata de um objeto físico, mas de uma separação, um corte que abre espaço. Aí está o objetivo do ato psicanalítico. 


Corte e espaço. Espaço do sujeito. 


É preciso operar com a falta, e não com o ser que tampona. É aí que encontramos o assunto, o tema, o sujeito. É na hiância de um ser, é nesse espaço imaterial que pode se apresentar o sujeito. Um sujeito sem substância resultado de um corte linguístico operado via matemática que possibilita a conta. 


Essa é a via lacaniana, essa é a via psicanalítica alinhada à ciência moderna, mas como todo significante, alinhada em diferença, pois ela não tenta foracluir o sujeito, mas sim abrir espaço para o mesmo.








 
 
 

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