Gozo como Predicação: A Resposta de Lacan ao Substancialismo
- Patrícia Mezzomo
- 19 de nov.
- 4 min de leitura
Eidelsztein finaliza seu Outro Lacan trazendo à baila talvez o assunto mais complexo e polêmico da obra lacaniana: o gozo.
Tema de muita confusão, que escancara o aristotelismo do nosso raciocínio ocidental: a "substância gozante" tornou-se corporal por seus continuadores e nos arremessou ao projeto biológico tão caro à nossa modernidade. Mas se, desde sempre, Lacan fala a mesma coisa em sua obra, por que não seria diferente com mais esse tema?
Nas palavras dele: “mas que a definição mesma de um corpo é que seja uma substância gozante, como é que ainda ninguém o tenha enunciado?”
Será que é porque o inconsciente vem sendo erradicado da lógica psicanalítica em nome de um corpo real que goza?
Mas se essa fosse mesmo uma lógica proposta por Lacan, por que ele teria se dado ao trabalho de criar uma terceira substância e não simplesmente atribuir à res extensa, aquela tridimensional, o gozo que Miller afirma ser do corpo? Por que criar outra substância para tratar da mesma coisa? Não faz sentido, é claro. Não faz sentido porque não é a mesma coisa. A res extensa não é a res gozante.
Como nos diz Eidelsztein, “a proposta de Lacan parte da pergunta: como ninguém se deu conta de que, além da substância pensante e da substância extensa, e das categorias aristotélicas, era necessário enunciar uma substância gozante?”
Talvez seja porque apenas cientes de que Lacan sempre anunciou que seu ensino é sobre linguagem, é que podemos articular a lógica de uma nova substância ao seu significante: “O louco está em esquecermos de que o “ser” provém do fato da linguagem e que nos engana porque parece haver substância, embora o suporte seja o intervalo, a fenda, o furo pré-ontológico”.
Novamente, é da confusão sobre o "ser" que estamos tratando aqui, sobre essa "mania" ocidental de materializar as coisas. O que vemos em Lacan é um caminho paralelo ao da ciência: assim como a ciência materializa seus objetos com fórmulas e equações, Lacan equaciona a linguagem, o furo e o sujeito. Ele materializa a insubstância.
Não parece ser possível entender a proposta de Lacan se não entendemos de onde ele parte, e é isso que o autor do Outro Lacan nos adverte do início ao fim: a leitura filosófica, humanista e heideggeriana da obra lacaniana é uma traição ao seu projeto científico lógico-matemático para a psicanálise.
A necessidade de Lacan de produzir uma "substância gozante" foi para localizar seu significante e seus efeitos, já que é o significante a causa do gozo. A origem em Lacan não está em Deus (como está para Descartes), mas na linguagem, no significante que é sempre do Outro barrado. Esse significante não "pensa" (como o cogito) e se distingue do tridimensional, já que admite objetos que se interpenetram (topologia).
Ou seja, para pensar a substância gozante, recorremos à linguagem, à matemática e à topologia. Mas como fazemos isso?
Eidelsztein nos orienta a pensarmos a relação corpo-gozo assim como pensamos significante-sujeito: como conceitos circulares, onde não há possibilidade de definir um sem o outro. Por isso não se trata de libido ou pulsão de morte, mas da cadeia articulada da estrutura da linguagem.
Na estrutura intervalar, S1 avança em direção a S2, pois um significante sempre pede outro significante. E S2 retroage sobre S1. Esse avanço seguido da retroação faz um "desenho" que Lacan chama de bucle, uma espécie de laço. A linguagem, para Lacan, não é uma linha reta (S1 → S2 → S3). A linguagem opera em bucle. E, ao fazer laço, faz furo. A retroação fecha o laço, criando um circuito fechado. E todo circuito fechado, em topologia, tem um furo no meio. É um "desenho" criado no dizer.
Em síntese, poderíamos dizer da seguinte maneira: o corpo é o que eu digo do corpo e esse dizer em avanço e retroação forma o laço, ou seja, forma o bucle “furado”.
Isso é o que significa dizer que o corpo lacaniano não é o corpo extenso (3D) de Descartes, nem o "organismo biológico" (de Miller). O corpo da psicanálise, o corpo que goza, é um corpo topológico, que é literalmente criado ex nihilo (do nada) pela "eficácia da linguagem" ao fazer laço.
O "corpo-gozo", não tridimensional, não euclidiano, “articula-se essencialmente a um conceito destacadamente abstrato da topologia moderna: um espaço, o espaço compacto, que articula infinito e finito”. Por isso Lacan nos dá a ordem lógica da sua substância: 1°) substância gozante (significante, furo) e 2°) substância pensante e depois a extensa.
A "substância gozante" é o conceito que Lacan cria para essa "insubstância". E o gozo? Como diz Eidelsztein, é o que acontece nesse furo, é o lugar da predicação: "no furo significante que se cria o lugar da existência do gozo como predicação. Lacan está postulando o valor do furo e suas predicações, sustentados em uma teoria do significante."
O Furo (criado pelo bucle S1-S2) é o Suporte Lógico (o hypokeimenon lacaniano, um suporte que é um vazio, uma "insubstância"). E o gozo é a Ousia lacaniana, é o que vem predicar esse furo. É o que "acontece" nesse lugar vazio.
Portanto, "o gozo como predicação" significa que o gozo não é uma "coisa" (substância material), mas um atributo lógico, um "efeito" que só pode ser dito sobre o furo que a linguagem criou. É por isso que, para Lacan, o gozo é um efeito da linguagem, enquanto para Miller, o gozo é a causa (que vem de um corpo biológico pré-linguagem).
A resposta direta à pergunta “O que acontece no furo?” é: O gozo enquanto predicação.


Comentários