O fracasso do discurso do analista
- Patrícia Mezzomo
- 26 de mar.
- 5 min de leitura
Texto escrito para a Sessão Teórica da Escola de Psicanálise Estrutural - EPE
Quando Eidelsztein postula em sua contracapa que a psicanálise proposta por Lacan de forma explícita foi e é lida de maneira contrária, talvez não seja possível ao leitor, sem adentrar as páginas de seu texto, ter exata dimensão da significação desta maneira contrária de se ler Lacan.
O desafio que o autor nos trás é entender tal inversão teórica, e talvez a reunião 4 seja o capítulo que nos apresente mais brutalmente o fracasso de Lacan, que é o fracasso do seu discurso - o fracasso do discurso do analista e de carona, o fracasso da clínica psicanalítica.
O que afinal - se conseguirmos entender a proposta teórica de Lacan que é a de fazer advir o sujeito - podemos entender como esta inversão que Miller defende? Seria fazer submergir o sujeito? Assujeitá-lo (ainda mais)? Fazer advir o eu? Me parece chocante a proposta invertida que coloca o eu como objetivo clínico e mais chocante ainda, que isso tenha passado despercebido a todo um campo de trabalho teórico clínico.
Livros e livros escritos sustentando tal teoria, a ponto de fazer valer o velho ditado de que: uma mentira dita mil vezes torna-se uma verdade. Acho até que mil é um número baixo, se aplicado ao nosso campo.
Eidelsztein segue sempre seu texto, marcando que sua posição é de uma luta teórica, mas me parece que o eixo pulsão-gozo-real-ser também nos arremessa diretamente às graves consequências clínicas de tal inversão da letra de Lacan. E como Eidelsztein mesmo nos confirma: “Depende de como abordamos o problema do ser, a forma com que entendemos a pulsão, o gozo, a prática clínica em psicanálise e a direção da cura”.
Novamente vemos marcada a inversão da direção, do sentido, do norte. Invertida para ir de encontro com a substância material do corpo e batendo em retirada do “moterialisme” proposto pelo francês.
Ao falasser cabe sua “relação” com o gozo. Millerianos, lacanianos, aristotélicos, biologicistas pegaram o caminho óbvio de seu viés, o corpo, o material, aquilo que é visto e pode ser tocado. O gozo do corpo real! Não se trata, como se diz em francês de jouissance, “ouvir sentido”, pois isso os colocaria de frente ao campo da linguagem e lhes embaraçaria diante de tal confusão teórica. A solução, me parece adequada ao que se propõe teoricamente porém gravíssima, no meu ponto de vista, nas consequências clínicas.
Eidelsztein nos sintetiza, ao final de seu texto, tal proposta lacaniana: a meta é o discurso do mestre! Mas que mestre? O gozo, o sentido, o ego, o sintoma, a doença! Não canso de me chocar. Então o analisante nos procura porque sofre de excesso de sentido, e o psicanalista lacaniano só tem a lhe oferecer mais sentido ainda? E agora colocando este sentido na posição de mestre (se é que já não estava)? Não teria sido melhor procurar uma igreja? Afinal, entre gozo e Deus, talvez o paraíso ofereça alguma vantagem maior do que esse enlouquecimento em que vive aquele que fala.
Cito Eidelsztein novamente, para tentar encontrar alguma explicação desta loucura: “Não se surpreendam, isso - o gozo do corpo funcionando como mestre - tem muitíssimos efeitos terapêuticos - positivos e negativos - segundo a ética do psicanalista em questão - Miller. O ser, em nossas coordenadas sociais e culturais, é uma necessidade do mestre, uma necessidade do discurso do mestre, que reforçada produz seus efeitos; o que se deve pensar é: qual a perspectiva psicanalítica nos efeitos buscados? Uma submissão amigável?”
Ahhhh, o sonho do neurótico enlouquecido, o sonho da bela alma! Aquela que não se reconhece como causa da própria desordem que ela denuncia no mundo e se apoia no saber de um Grande Outro para que siga descomprometida de seu próprio sintoma.
Quanto mais vou de encontro ao que Lacan tentou dizer, mais me apercebo entendendo a resistência de seus leitores em não escutá-lo. Lacan não propõe uma inversão apenas. Ele nos tira a garantia. Ora, diante de um homem já fragilizado com a queda suprema de seu deus medieval, tornar-se agora o centro “vazio” do mundo, parece requerer um tipo de coragem a qual acredito, esse mesmo homem não estava disposto a encarar. Quase posso ouvi-lo dizer: “Se serei eu o centro do mundo, tenho que ser algo, não posso ser nada. Ao menos um corpo eu serei”.
A queda de deus, do pai e portanto de garantias, nos arremessou direto ao abismo do vazio que imagino seja a sensação do caminhante do cadafalso rumo ao seu fim no infinito do oceano!
Não à toa enlouquecemos. Nos fazendo belas almas, ignorantes a tudo e a todos, sempre em busca de algo, qualquer coisa, que nos dê sustentação material, a qual nos agarrarmos.
Acho que consigo entender o que Eidelsztein diz quando escreve: “O ser, em nossas coordenadas sociais e culturais, é uma necessidade do discurso do mestre, que reforçada produz seus efeitos.”
Não fica difícil fazer analogia de tal proposta ao tratamento das psicoses, quando Lacan orientava a busca de uma igreja. Se o nome-do-pai já estava foracluído, então que possamos substituir com um metáfora estável há tantos séculos. Mas para aqueles neuróticos que já não encontram um “deus” garantidor e são herdeiros justamente desse luto, a psicanálise oferece nada menos que um corpo!!!!!!! Seria um ato de desespero ou de loucura?
Não sabemos se estamos diante da loucura ou da psicose, mas me parece que o grande problema da psicose, que é a impossibilidade de formalização, pode se aplicar a nossa situação atual, no que diz respeito a teoria. No campo da linguagem, a falta de uma fórmula comum, denominada de inscrição do nome-do-pai, impossibilita ao psicótico, metaforizar sua angústia em falo. Sem lei e sem fórmula, diante da angústia, enlouquecemos ou psicotizamos. No campo da teoria psicanalítica, Miller tampona essa angústia com o material biológico do gozo do mestre corporal. Já Lacan, diante deste vazio, não tampona, formula. Vai buscar nas ciências do negativo, a fonte de seus matemas, discursos e formulações do real, que, como bem marca Eidelsztein, somente apresenta-se enodado ao simbólico-imaginário e não ao inefável do corpo místico isolado e sem linguagem. Lacan nos apresenta o discurso do analista, do objeto a, o discurso do não-ser, não-ontológico, como posição e meta de uma análise, exatamente o oposto ao que Miller quer fazer valer e parece ter encontrado êxito reforçando ainda mais a ideia de que o fracasso de Lacan foi do discurso do analista.
Para que não sejamos vítimas da uma “vergontologia”, mais um neologismo de Lacan, tentando tamponar nossa angústia e nossa teoria com o discurso do ser substancial, devemos nos aventurar pelo campo esvaziado de sentido desse ser. Há que se abrir mão do sintoma, do jouissance, para que seja possível uma extração lógico-matemática que nos tire dessa lógica infernal que somente o inefável e místico seria capaz de solucionar. E a saída está nas ciências modernas, na linguística, na antifilosofia, na topologia, e na matemática.
Espero apenas que não escolhamos, em um futuro próximo, o caminho de um deus agora matemático.
“Eu sou indemonstrável e verdadeiro”. Gödel
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