Outro Lacan - Reunião 3 - O retorno ao real
- Patrícia Mezzomo
- 20 de mar.
- 4 min de leitura
Atualizado: 21 de mar.
Texto escrito para a Sessão Teórica da Escola de Psicanálise Estrutural - EPE
Por que Lacan retorna? Retorna para onde?
O retorno a Freud sempre me pareceu algo dado como entendido na teoria lacaniana. Afinal, retornamos para retomar o que fora perdido nas gerações seguintes. Acreditava eu que Freud havia inventado a psicanálise e que seus seguidores haviam-na suprimido em nome de uma psicologia do ego. Pronto, tínhamos o entendimento e o culpado, o mau leitor de Freud. E Lacan, o elucidador, do erro, que retorna para corrigir a rota.
Então surge Outro Lacan para provar que o entendimento é a substância do registro imaginário, e que a subversão de Lacan sempre está onde menos imaginamos.
Mas então Lacan retorna para se opor? Se opor ao Mestre? Não à toa, foi excomungado, afinal tal heresia só seria digna de um punição a altura, com caráter religioso, tamanho pecado proposto.
Mas bem, voltemos à pergunta. Retorna para onde?E nisso me pergunto, porque Lacan usou a palavra retorno? Porque não disse logo que estava se opondo a Freud sem voltas linguageiras?
Logo me apego ao exemplo de uma estrada. Porque um motorista decide retornar? Porque, me parece, no retorno está implícito, a busca do sentido oposto!!! Retorna-se para seguir em outra direção, outro Lacan! Porque não percebemos isso?
“Em francês, retourner significa, fundamentalmente, virar, revolver, virar do avesso, desorientar”. Volto ao dicionário. Desorientar: perder a direção correta, deixar de ter rumo, desconcertar, agir confusamente. Acho que o retorno deu certo! Eidelsztein segue: “Para estabelecer os efeitos de verdade que podem ser localizados em uma leitura de Freud, é necessário voltar a dizer o que propôs Freud, mas invertendo o sentido”. O efeito de verdade, segundo Lacan, encontra-se quando deixamos a direção correta. Correta para Freud, neste caso.
E ainda na analogia da estrada, me parece que o retorno se fez necessário também, pois a frente não havia mais asfalto, mas um muro, uma parede, um rochedo - da castração. Parece-me que o freudolacanismo decidiu lapidar tal rochedo até que se tornasse imaginariamente real e por uma sorte do “destino” me vejo com esmeril em riste, optando pelo caminho do retorno.
Mas antes de seguir em frente, me questiono sobre tal muro. Preciso saber se realmente o sentido não é mesmo aquele que seguíamos.
Recorro ao repertório teórico, e penso: o que faria algo da linguagem se tornar um rochedo? Minha mente sugere o significado no lugar do significante. Uma análise só empaca, quando o analista se perde do seu lugar de escuta do significante e passa acreditar que o que ouve é mesmo aquilo que ouve e se dá por satisfeito. Aqui cito Eidelsztein: “O sentido nunca perderá a forma de interrogação. Se acontecer, passou a ser significado…”. Vejo então a palavra solidificar-se em rochedo de significado.
O que sustenta uma teoria?Eidelsztein para além de todos os argumentos teóricos que utiliza em seu Outro Lacan, também nos conduz pela disciplina teórica em si. Afinal é necessário que se saiba o terreno teórico em que se pisa, ao defender uma posição.
E para tal, há que se formalizar a teoria através da ciência. A ciência formaliza o método mesmo que não nos prometa respostas. Ora, não é disso que vive o psicanalista?
Freud, em sua ciência, encontrou o inconsciente e tentou explicá-lo pegando o sentido do biologicismo, encontrando um muro material aristotélico e corporal. Lacan retorna e segue em sentido oposto, rumo a uma outra ciência, a ciência lógico-matemática, a ciência das letras matemáticas, respondendo com a criação do seu conceito do real.
Ele retorna para ir mais além. Mais além do significado. Essa é a solução para o rochedo da castração. Lacan inverte porque Freud pegou uma “rua sem saída”. A escolha teórica freudiana impede o real de Lacan. Com freudolacanismo não é possível entender esse real.
Mas por que o real?
“Não se trata do inefável, mas do impossível de se escrever matematicamente. A letra lógico-matemática, como também o número, carecem de significado, e ao carecer de significado, é impossível que se possa estabelecer ali o sentido, porque o sentido é mais além deste significado” e implica a pergunta: o que queres me dizer com isso que me dizes?”
Aqui Eidelsztein aponta o sentido proposto na oposição a Freud. “o sentido é o equivalente à pergunta pelo que Outro quer dizer mais além do que diz, que não supõe de forma alguma que ele o saiba”.
Penso que justamente por ser o impossível-lógico de se escrever, é essa a maneira de manter o caminho aberto para a metonímia significante, que desliza sempre em busca de algo mais, em busca do mais além do significado. A única via possível capaz de se opor o rochedo da castração e ao real corporal.
Michele Roman escreve: “A direção do tratamento não é de fechamento, mas de abertura de sentido, não está do lado do significado, mas da significação por meio da qual se produz o esvaziamento de sentido que desaliena o sujeito de suas determinações significantes - não está o significado, mas o “não-sentido” no horizonte da análise”.
Mais uma vez Lacan surpreende e revira o sentido ao nos propor ir em direção ao real para se opor a ele!
“O advento do real não depende em nada do analista. Sua missão, a do analista, é ir contra”
Lacan faz oposição a Freud e faz oposição ao Real, mas considero muito diferentes as duas oposições propostas. Em Freud vemos um retorno, para que se possa seguir em frente, um retorno pois não é possível atravessar o rochedo corporal, material, biológico, o rochedo do significado. Só nos resta, revirar e seguir sentido contrário, veja bem, seguir, continuar. Já no real, não se trata de seguir, mas sim de contornar, formular e calcular, fazendo oposição com o mais além. Estamos falando de um rochedo que não é rocha, mas sim buraco. Buraco no qual se dá voltas e voltas, se opondo ao impossível ao contorná-lo.
Buraco que responde se opondo a rocha. Vazio que pede por mais e não conclui. “Não pode existir desejo se não há mais além da demanda, isso na clínica psicanalítica é fundamental: deve ser dito: porque, do contrário, não é possível o mais além do dizer. O sentido somente aparece mais além do significado”.
Sentido do desejo, o asfalto teórico que escolhemos pisar.
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