A insubstância como suporte material
- Patrícia Mezzomo
- 20 de mar.
- 7 min de leitura
Atualizado: há 5 dias
Texto escrito para a Sessão Teórica da Escola de Psicanálise Estrutural - EPE
Desde a leitura do primeiro texto, me causou intriga a confusão feita pelos leitores de Lacan a ponto de fazerem uma inversão no sentido de sua obra e consequentemente no sentido da direção do tratamento.
O tema do imaginário me parece ser de vital importância para a compreensão da proposta que Eidelsztein nos traz, acerca do texto de Lacan.
Será que o registro do imaginário, que é o registro do afã de consistência mas que produz o engano, permeou a leitura de Lacan, causando uma confusão e fazendo com que os leitores tomassem por real, aquilo que é imaginário?
No primeiro capítulo vemos isso acontecendo com a leitura do que é o corpo em Lacan e do que é o corpo para os lacanianos. Nos deparamos agora com novos conceitos que foram lidos de maneira inversa, e reforçados por uma tentativa de elucidação que talvez possa ser tomada por uma elucidação imaginária.
Lacan afirma ao longo da sua obra que o imaginário causa dois tipos de engano. O primeiro refere-se ao eu - “Eu sou eu” - o segundo vai mais além quando afirma - “Eu sou meu corpo visível”.
É com foco no segundo engano que devemos tentar nos aproximar do entendimento do fracasso da transmissão do ensino de Lacan.
Na página 50 do texto, um comentário nos aponta uma possível causa da inversão do sentido da obra, a saber, o discurso do Mestre.
Mestre é aquele que sabe, que porta um saber, um sentido. E tudo aquilo que não se apresenta seguindo este mesmo sentido, por lógica, se coloca em oposição a este saber. Vai contra.
Ora, é senso comum no nosso campo, o caráter disruptivo e subversivo do psicanalista francês. Disso não há muita dúvida. A pergunta que fica é: será que sabemos que subversão do discurso do mestre é essa que Lacan nos propõe?
Pois me parece que é justamente o não entendimento, ou melhor, a não aceitação, desta disrupção que faz com o que o leitor de Lacan, apoiando-se no discurso do mestre vigente de sua época, acabe invertendo o sentido que já era contrário, proposto por Lacan. Não ironicamente, inverteu-se a inversão e ficou tudo na mesma. No mesmo discurso aristotélico ocidental que perdura há tantos séculos, e que nos diz que as coisas são na medida que eu posso senti-las, tocá-las e principalmente, vê-las. A visão tem função de destaque imaginário. Lembremo-nos o que foi dito mais acima: “Eu sou meu corpo visível”. De alguma maneira Aristóteles acredita na consistência do que vê e carrega consigo todo o ocidente. Esse é o discurso do mestre ao qual Lacan se opõe e fracassa. Ele nos diz que esse é o engano. Estamos confundindo o registro do real com tudo aquilo que entendemos portar consistência.
Cito ainda a página 50, agora no final, para que o próprio Eidelstein possa explicar a resistência em capturar a ousadia de Lacan:
“Nos últimos anos do ensino de Lacan, percebe-se uma proliferação de neologismos. Esse é outro dos motivos pelo qual muitas vezes é preferido, em função da dificuldade teórica, a elucidação realizada pelos comentadores, deixando de lado o texto de Lacan. Não apenas porque a elucidação é clara e propõe algo evidente na ideologia vigente, mas também porque, não é que Lacan era incompreensível pelo seu barroquismo, nem mesmo por seus neologismos, mas porque o conteúdo do que ele diz resulta inverossímil. Isso favorece muito a preferência pela elucidação, deixando de lado o afirmado por Lacan. É que Lacan é incompreensível, mas se ficasse claro, ou se estivesse perto de se entender um pouco seu ensino, aquilo que ele afirma, inclusive a respeito de Freud, seria subversivo demais. Tamanha a novidade que não teve termos da língua para dizê-lo e por isso produziu essa grande quantidade de neologismos”.
Gostaria de marcar o subversivo demais. Pois acredito ser disso que se trata o fracasso. É disso que se trata a inversão do dito francês. Eu ouço mas não aceito, portanto inverto. Inverto para o já vigente discurso de uma base material visível e passível de ser tocada e portanto “verificada na realidade”.
Mas como é possível Lacan afirmar uma existência quadridimensional, exilada na linguagem? Inverossímil me parece pouco aos meus ouvidos aristotélicos que traduzem em angústia aquilo que ouço. Talvez por isso esse livro cause tantos afetos, talvez porque Eidelstein esteja conseguindo cercar o tema do fracasso, que é o tema do exílio do ser.
Esse é o giro para a linguagem, o giro linguístico que nos diz, que há um ser, mas ele não está naquilo que vemos ou tocamos, mas naquilo que é dito. O ser habitando em exílio a linguagem.
Cito Eidelstein novamente, agora na página 53: “exilados na linguagem é muito diferente de habitá-la, já que habitar dá a sensação de uma relação de inclusão, em grande medida, pacífica e harmoniosa. Mas, Lacan afirma que a vida do homem e da mulher se caracteriza por estar em exílio na linguagem. Assim, “homem” e “mulher” não possuem lugar natural, nem na natureza nem na linguagem, já que sua relação ali é impossível de escrever”.
O título desta reunião é: Sobre natureza, substância e matéria no ensino de Lacan. Seriam estes, os locais em que ao nos tornarmos seres de linguagem, tenhamos sido exilados?
A teoria de Lacan é a da contra-natureza, da insubstância e do moterialisme, neologismo que me parece de extrema significância, pois nos comunica que a nossa base material é a da palavra e não da matéria, já que “mot” em francês também significa palavra.
Nossa morada é a linguagem e ela é frouxa, não temos onde nos segurar. O significante desliza metonimicamente e se substitui metaforicamente. A solução elucidada me parece apresentar um corpo biológico como opção para fazer suporte. Mas isso, orienta um evidente individualismo substancialista. Estaríamos isolados em nossos corpos materiais?
Mais uma vez Lacan subverte e nos apresenta outro suporte, que não o corpo biológico, mas sim, o furo. E mais uma vez ele nos causa vertigens ao nos tirar as referências do discurso comum, nos colocando a “pensar com os pés”. Não sei se foi isso que ele quis dizer com essa expressão, mas a mim só me resta pensar com o lado oposto do corpo para encontrar o novo sentido de sua proposta. É a partir do furo que ele teoriza sua substância. A substância é resultado da eficácia, não do fracasso, mas da eficácia, da linguagem cujo suporte é o furo. O furo é suporte! O furo é a substância! O furo é o objeto a, pelas palavras do próprio Lacan: “… e que não é por nada que o chamei pequeno a, é, a saber, a substância de vocês, a substância do sujeito, na medida em que, como sujeito, vocês não tem nenhuma…”
Aqui é um ponto impactante. Na nossa tradição linguística e filosófica, “substância” é geralmente utilizada para indicar o ser, a essência e a natureza de algo. Ou seja, para a ontologia ocidental, o ser é substancial. Isso é exatamente o oposto do que Lacan está propondo. Ele nos dá o objeto a como substância. Ele nos dá o furo, em torno do qual ex-sistimos! “Tudo aquilo que seja concebido e apresentado como objeto a deve ser, existir carente de ser substancial”.
Lacan subverte a filosofia com a sua psicanálise. Tudo o que haveria do ser, no sentido da filosofia ontológica que reina entre nós, para ele é loucura, engano, caso seja apresentado substancialmente. O ser com o qual nos deparamos, pelo menos na psicanálise, sempre vai estar “ao lado do ser”, deslocado do ser. Ou seja, há um ser em Lacan, mas ele não é substancial e está exilado.
Ainda citando Eidelstein: “Lacan pensa a psicanálise pelo avesso de Freud e esse é outro motivo para que não se entenda o que ele diz. Para poder ler a proposta de Lacan, é necessário criticar o substancialismo de Freud, já que é possível que muitos psicanalistas, com algumas diferenças, também estejam afirmando a mesma coisa que os neurologistas: que primeiro está o corpo biológico, com seu cérebro, genes e energia e, depois, a palavra, a cultura etc.”
Mais uma vez terei que usar meu pés, pois me descubro ainda substancialista já no final do capítulo. Como pode uma palavra vir antes do aparelho que a profere?
Recorro a Eidelsztein que nos oferece o “isso pensa” para afirmar que há algo que se pensa sem os neurotransmissores. E isso é o inconsciente. O inconsciente é o argumento contra o materialismo do neurônio. “Isso pensa” e “isso fala” sem coincidir com nenhuma pessoa ou substância. O sujeito de Lacan é insubstancial e incorporal. Não é necessário que alguém saiba, para que haja o saber não sabido do inconsciente. Isso se sabia mesmo que ninguém soubesse. O paradigma da neurologia pode ser subvertido com o inconsciente de Lacan, que afirma que existe o fato do dizer e que, para esse dizer, não é necessário autor. Se não há autor, os neurônios não explicam os textos. Para nós o saber não está na cabeça de ninguém.
O isso está apoiado em um furo que é o da insubstância ou o moterialisme. Se acreditamos que se trata de neurônios ou corpo, vamos cair no engano substancialista e, então, não poderá ser aceita a criação ex-nihilo, nem será admitido o objeto a e nem o parlêtre. A matéria é a palavra, mot, moterialisme. Lacan é explícito ao afirmar que a matéria é originada do material significante. Nos apoiamos realmente no furo significante.
Lacan foi o único psicanalista e o único pensador que sustentou que os fatos de nossos padecimentos e da nossa felicidade são, existem, consistem e se apoiam em um mundo que é de linguagem e habitam, fundamentalmente, nos furos espaciais que dissolvem as crenças na substância. Tudo isso é de uma subversão radical e não a toa tenha sido rejeitada por quem o leu e o transmitiu.. Há que se inverter toda a forma de se pensar a existência, o ser e a realidade. Mas de maneira nenhuma me parece inverossímil. O que me parece é ser urgente e necessário a reforma do nosso entendimento ontológico. É o estudo do giro para a linguagem, onde ali encontraremos o sujeito insubstancial da psicanálise e da ciência moderna.
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