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As filosofias do século XX e a psicanálise não ontológica 

  • Foto do escritor: Patrícia Mezzomo
    Patrícia Mezzomo
  • 25 de jun.
  • 4 min de leitura

Texto escrito para a sessão teórica da Escola de Psicanálise Estrutural - EPE


Uma rápida visita ao segundo capítulo da filosofia do século XX de Remo Bodei, pode contribuir em imensa medida ao estudo teórico do psicanalista que se aventura na proposta não ontológica de Jacques Lacan.


É findado, há algum tempo, o mundo que acreditávamos existir. O tempo da metafísica acabou. A objetividade do conhecer, com seu positivismo ingênuo que se baseava em fatos dados, onde o cientista acreditava que bastava recolhê-los com método e ordená-los, já não funciona adequadamente. As barreiras já não existem como antes e os saberes se entrelaçam, exigindo do cientista, uma batalha com as certezas de outrora. Desvanece-se definitivamente a imagem vantajosa da existência de normas fixas e naturais; o mundo afigura-se, de repente, menos coerente, menos redutível a padrões de simplicidade. As mudanças agora são macroscópicas, aos olhos de todos. Os velhos pólos de convergência metafísica do todo (Deus, homem e mundo), sob os quais a realidade fora rubricada, já não se aguentam e desagregam-se a partir de dentro


O pensamento e a interpretação, que antes surgiam como aditivos não autorizados, revelam-se agora resultantes de operações complexas, afirmando-os como subordinados aos parâmetros dos sistemas observacionais escolhidos. Ou como diria Lacan, “não procuro, acho”. Por isso, a imagem do mundo proposta pela física é tão surpreendente para o senso comum, inverte a sua ideia de um universo sempre igual a si próprio, independente do sistema de referência escolhido, para o enquadrar na intervenção do observador


Os efeitos ecoam em todas as áreas.  A nova psiquiatria, afastada dos argumentos de fenômenos naturais e orgânicos, encara a incompreensibilidade do doente mental no seio das relações interpessoais. Os delírios têm, portanto, sentido, se formos capazes de traduzir estas formas de privatização linguística nos termos de uma lógica e de uma concepção do mundo mais vasta e complexa. 


A própria relação entre lógica e matemática entra em crise e se agarra ao desejo de fundar a matemática em bases lógicas, trazendo como consequência, desenvolvimentos muito ricos, quer na sistematização, quer na abertura de insuspeitados campos de investigação. Informática, inteligência artificial, matemática da comunicação, filosofia e dinâmicas sociais. Tudo isso está longe de ser esgotado.


É nesse contexto apresentado por Bodei, que encontra-se o psicanalista do século XXI. Numa profunda crise entre o antigo e o atual, entre o biológico e o linguístico, entre a ontologia e a matemática. Entre a experiência e o rigor teórico. A crise é ética e intelectual.



Lacan já denunciava essa crise como um rechaço a intelectualidade, apontando para a cretinização engendrada pela própria cultura ocidental, ele faz um diagnóstico a respeito da degradação teórica dos psicanalistas e a degradação do progresso científico nas instituições, que acabarão dando um sentido funesto a todo seu ensino.


Ora, sabemos que a operatória do ato depende do saber teórico, que, ancorado em ciências formais, fornece o rigor necessário para “fazer um analista à altura da função sujeito”. Isso só é possível subvertendo o conceito de sujeito vigente, que prevalece há séculos e que confunde e faz equivaler sujeito, agência e eu. A resposta é a reforma do entendimento que leva o analista a considerar o sujeito como efeito do significante. E Lacan tenta empreender essa reforma a partir das ciências formais. Em seu texto, “Talvez em Vincennes”, ele propõe a linguística, lógica, topologia e antifilosofia como disciplinas de valor formador ao psicanalista.


Esse modelo teórico tem como consequências a substituição das categorias fundamentais do tempo, espaço e matéria: Trata-se agora do tempo lógico e não o cronológico. O espaço euclidiano cede lugar a topologia e a matéria ganha status de palavra em seu “moterialisme” ao se referir ao significante. E a matemática é a “menina dos olhos” do saber formalizado do psicanalista. Por tratar-se de um saber sem substância corporal alguma, ela fornece rigor ao ato que faz acessar o sujeito sem levar ao engano da metafísica ontológica.


Diante desse cenário, o psicanalista contemporâneo encontra-se, na encruzilhada de uma crise que é, em sua essência, ética e intelectual. A escolha não é trivial: pender para uma mitologia ontológica, que insiste na primazia do corpo e em um "eu" substancial, significa rechaçar a advertência de Lacan sobre a degradação teórica e a "cretinização" intelectual.


É, portanto, na matemática, com seu rigor intrínseco e sua natureza sem substância corporal, que o psicanalista encontra a âncora decisiva para a ética de sua prática.  Essa adesão às ciências formais não é meramente uma opção metodológica; ela se configura como a condição sine qua non para que o psicanalista possa verdadeiramente "fazer um analista à altura da função sujeito".

Assim, a matemática transcende o papel de mera ferramenta conceitual para o psicanalista; ela emerge como a pedra angular de sua ética profissional. Ao abraçar a formalização matemática, o psicanalista não apenas garante a coerência e o rigor de seu saber, mas também se posiciona ativamente contra o rechaço à intelectualidade. É através desse saber formalizado, que não ontologiza nem se engana com a metafísica, que a psicanálise do século XXI tem a possibilidade de resgatar e reabrir as vias do inconsciente, permitindo que ele se manifeste e seja trabalhado em sua complexidade radicalmente linguística, longe das lógicas euclidianas e aristotélicas que ameaçam seu desaparecimento. A matemática é, de fato, o fator decisivo para uma psicanálise ética e eficaz no nosso tempo.


 
 
 

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